COZINHA ARQUEOLÓGICA (4)

E agora vem a parte que para mim é mais interessante, pois levanta o véu das receitas mais apreciadas do Mundo Antigo, e tão nossas desconhecidas! Só precisamos "do avental e do forno"!

"É pois urgente que, como elemento de crítica, reconstituamos a cozinha antiga.
Nada mais fácil, tendo um avental, um forno e a Arte Culinária de Apício.
Eu não possuo, nem conheço este tratado venerável. Mas, através de ténues e modestas leituras, tendo recolhido algumas receitas, suficientes para aqueles espíritos curiosos que queiram investigar sem cansaço, sem extensos estudos, esta feição do génio antigo.
Marcial ou Aulo Gélio, não recordo qual, assegura que um bom jantar pode constar de um peixe, um bolo ou pudim e uma garrafa de vinho. Era este um jantar muito usual na Grécia, e depois em Roma, para a gente azafamada ou sóbria, que queria comer rapidamente, sem despesa e sem pesadume. Equivale ao jantar moderno, em Paris ou Londres, engolido à pressa antes do teatro, mesmo no mundo do luxo, e que se compõe de uma sopa, de uma costeleta, de uma fruta e meia garrafa de Bordéus.
Pois eu sei como se cozinhava este jantar em Atenas ou Roma, aí pelos tempos de Augusto e ainda mesmo sob os Antoninos. O peixe, por exemplo, pode ser uma taínha. E aqui está como ela se prepara, ó estudiosos! Tomai essa taínha. Escamai e esvaziai. Preparai uma massa bem batida, com queijo (que hoje pode ser parmesão), azeite, gema de ovo, salsa e ervas fragrantes, e recheai com ela a vossa taínha. Untai-a então de azeite e salpicai-a de sal. Em seguida assai-a num lume bem forte. Logo depois de bem assada e alourada, humedecei-a com vinagre superfino. Servi,  e louvai Neptuno, Deus dos peixes.
O outro Prato, pois que se trata de um festim ligeiro, pode ser um queque ou pudim feito pela receita do ilustre  mestre Crisipo. Tomai duas ou três alfaces, bem repolhudas. Lavai e enxugai. Deitai vinho dentro de um largo almofariz, e pisai, mortificai nele as folhas de alface. Passai por um ralo para que todo o líquido se escoe; e à alface assim amachucada no vinho, juntai farinha de trigo, uma pouca de manteiga e pimenta. Pisai de novo, até obterdes uma massa firme. Dai a esta massa a forma de um bolo chato e redondo. Colocai-o na frigideira com azeite, e frigi num lume vivo. Toda a Antiguidade considerou este bolo uma delícia e chamava-se "catillus ornatus". Não sei se gostareis. Era um prato dilecto de Pompeu.
Podemos depois findar, se quiserdes, pela famosa "empada de rosas". Era um acepipe muito usado em todas as festas do culto de Vénus. Para o realizar, descei ao jardim, colhei as rosas mais largas e mais cheirosas. Pisai-as no almofariz. Juntai miolos de galinha, de pombo e de perdiz, muito bem cozidos, depois de os terdes desembaraçado das mais pequeninas fibras. Acrescentai ainda duas gemas de ovos, um fio de azeite puro, pimenta e vinho velho, de Malvasia. Depois de bem mexido tudo, até conseguir uma massa leve e fina, deitai numa caçarola nova de barro e colocai sobre um fogo lento e contínuo. Logo que a superfície se aloure, servi. Por toda a sala se espalhará um aroma de rosa, e a vossa alma bendirá Apício Célio, criador desta maravilha.
E já que tivémos rosas em empada, por que não beberíamos o famoso vinho rosado? As receitas para o fazer diferem,  mas a mais simples e rápida é a de Pausânias. Desfolhai um ramo de rosas, guardai-as durante um dia e deitai-as dentro de dois ou três litros de vinho velho (de Bordéus, hoje). Ao fim de três ou quatro semanas, juntai um arrátel de mel. E se pensais que o gosto e o saber de Heliogábalo podem ser seguidos com confiança, acrescentai ao vinho, horas antes de o beberdes, um punhado de pinhões esmagados, como fazia esse esplêndido e imperial estróina.
Aí está, pois, um muito fácil e acessível jantar greco-latino"...

E a prosa queiroziana prossegue dando-nos conta do ambiente ou cenário em que o festim se desenrola, para que não falhe nenhum pormenor nesta refeição. Fala ainda das Simposíacas de Plutarco, "um tratado superior do regime intelectual a seguir durante um banquete".
São só mais duas páginas, mas não as reescrevo por dois motivos:
- não vos quero maçar mais;
- não quero ofender os direitos de autor.
Se alguma leitora ou leitor estiverem interessados nesta última parte, é só pedirem para o e-mail do blog, que eu enviarei com muito gosto para o vosso endereço electrónico.

 Notas: Um arrátel corresponde a 459 gramas.
No texto, quando Eça se refere a lume intenso, julgo que se trata de forno.
A avaliar pela minha experiência com a Tigelada à moda da Beira Baixa, a caçarola de barro para a Empada de Rosas, devia ser prèviamente aquecida no forno, e só depois seria introduzida a massa.
Isto para o caso de haver por aí algum corajoso, curioso e douto, como diria Eça de Queiroz, que queira experimentar, (he, he) !!!

Desejo-vos uma boa semana, com tudo a correr pelo melhor.
Beijinhos da

Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima

COZINHA ARQUEOLÓGICA (3)

Ora vivam! Cá estou eu para vos mostrar mais um bocadinho (para não vos maçar muito, he,he!) da Cozinha Arqueológica de Eça de Queiroz.
Hoje, o tema que ele apresenta, tem a ver com a mesa e as mesas; com as regras de etiqueta que já naqueles primórdios era tão importante; e com alguns menus da época.

" Também, por isso, não há detalhe exterior que nós não conheçamos, desde que se trate de um jantar romano - sobretudo nas casas luxuosas. Logo as salas nos são familiares, com os seus soalhos de mosaico ou de madeiras preciosas incrustadas de pedras faiscantes, ou de mármore numídico que se juncava de violetas e rosas; com os seus tectos de cristal, ou feitos de lâminas, para que de entre elas pudessem chover sobre os convivas aromas ou flores...
Tudo isto é conhecido, assim como as mesas, que se mudavam a cada serviço, umas de cedro, outras de marfim, outras de limoeiro com relevos de ouro, sustentadas por pés de ónix. Uma dessas mesas magníficas custara a Cícero, simples advogado sem grande fortuna, perto de quarenta contos. Mas que é isso em comparação com os tapetes de Élio Vero, um elegante enfastiado e doente, que valiam cada um cento e vinte contos? Do esplendor das pratas e das baixelas, e dos seus preços esmagadores, contam superabundantemente os coscuvilheiros e anedóticos historiadores da História Augusta.
Sobre a etiqueta dos banquetes temos também uma ciência segura; porque ela era tão essencial, de uma tão séria influência na vida pública, que Paulo Emílio, o vencedor de Perseu, considerava igualmente necessário ao homem de Estado, ao verdadeiro Romano, o saber organizar uma batalha e dispor um festim. Por isso os tratados abundam, marcando rigorosamente as horas mais favoráveis para um jantar delicado, o número dos convivas (que nunca deve ser inferior ao das Graças, nem superior ao das Musas), as conversações mais conducentes a uma boa e ditosa digestão (evitando sempre tudo o que se refira a processos ou negócios), a duração dos serviços, a sequência dos vinhos, o momento dos coros e da música, a ordem das saúdes oficiais e íntimas, os lugares de honra (os lugares consulares) nos triclínios, o modo de usar as coroas de flores e a qualidade dos presentes que à sobremesa o anfitrião distribuía ao som das harpas.
E do jantar propriamente, possuímos centenas de menus. Começava-se sempre simbolicamente pelos ovos: ab ovo. E desde logo aqui aparece, a meu ver, a lamentável deficiência da nossa erudição. Nós desconhecemos como se cozinhavam os ovos - ou, pelo menos, ignoramos o gosto, o sabor especial desses ovos iniciais. E, de facto, ignoramos o paladar de todos os pratos da alta cozinha clássica.Neste nosso fecundo período de reconstituições históricas, ainda não apareceu um cozinheiro bastante douto, que acendesse os seus fornos e refizesse um jantar romano, segundo as receitas da Arte Culinária do grande Apício. Os arquitectos têm reconstruído, com um saber forte e sagaz, os templos, as casas de cidade e de campo, as ornamentações dos jardins, os próprios sistemas de esgotos. A pintura tem ressuscitado em telas tão minuciosas que cada pincelada resume um tratado, todos os aspectos do viver greco-latino: as ruas, os mercados, as lojas; uma primeira representação num teatro; a Via Ápia, à tarde, à hora do passeio; a leitura pública de um poeta no Foro; uma sesta luxuosa nas Termas... Armas, carruagens, trajes, mobílias, jóias, tudo está modelado com paciente perícia. Toda a civilização, material e sumptuária da Antiguidade, a podemos ver, palpar, usar. Só não tratámos ainda de conhecer o sabor dos petiscos que comeram Lúculo ou o vasto Vitélio.
Há aqui uma lacuna crassa. E tanto maior quanto o sabor de um pitéu nos dá uma ideia mais completa do povo que o prefere, do que a forma de uma lança ou de um jarro. O homem põe tanto do seu carácter e da sua individualidade nas invenções da cozinha, como nas da arte. O Parténon, a Vénus de Milo e as Anacreônticas dão menos ideia da doçura, da graça, da delicadeza, da ligeireza dos Atenienses, do que aquela sua sobremesa tão predilecta e que consistia em maçãs cozidas desfeitas em mel, depois cozinhadas em folhas de rosa. E não basta afirmar doutoralmente que o imperador Maximino preferia o pato, que Alexandre Severo só se alimentava de lebre, que Augusto era um amador constante de pescadinhas, que Albino comia quatrocentas ostras, que Adriano tinha por prato favorito a empada de pavão, que Tibério de deleitava no pepino, que na mesa de Górdio II havia todo o ano maravilhosos melões e que Tácito amava ainda mais a salada do que a verdade. O interessante seria conhecer o preparo e o sabor destes pratos diversos, e reconstituir, com todos os condimentos, as pescadinhas de Augusto e o pepino de Tibério.
Logo por esta paixão do pepino está Tibério explicado, se acreditarmos no ilustre Dífilo que, mais que nenhum antigo, possuiu a ciência dos legumes e que afiança que o pepino produz "bílis, sentimentos amargos e misantropia". Nesta apreciação do pepino está Tibério todo revelado. E o povo romano não se revela ele também, todo inteiro, naquele petisco chamado moretum, que era uma paixão nacional, e sobre o qual Virgílio, como poeta nacional, rimou um poema?
O moretum era um guisado, uma moxinifada genial, em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada! E tudo isto se fundia, se unificava, fazia um petisco imortal. Quem não vê aqui manifestar-se o próprio génio de Roma, cujo esforço foi sempre criar a unidade na universalidade? O moretum é o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do Império."

Amanhã terminarei a partilha convosco,  deste livrinho que tanto me deliciou.
Depois o Meu Estaminé fechará por uns tempos. Está na altura de ir colher as uvas, os fígos , os marmelos e fazer as compotas do costume! Apanhar o louro para secar, o alecrim e a alfazema.
De tudo isso vos darei conta quando regressar. E prometo que vos darei umas receitas de Eça de Queiroz de que gostarão, certamente! Será assim como que um prémio para a paciência que tiveram com estes artigos tão extensos!

Beijinhos da

Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima

COZINHA ARQUEOLÓGICA - 2

Então, cá vai mais um pouco da Cozinha Arqueológica de Eça de Queirós.
Ao ler o que ele escreveu no séc. XIX, reconheço hábitos que ainda hoje permanecem em pleno séc. XXI !

Segundo ele, "a mesa constituiu sempre um dos fortes, senão o mais forte alicerce das sociedades humanas. Já os Gregos diziam, que a mesa é a alcoviteira da amizade! Não só da vida íntima, mas na vida pública das nações, o jantar constitui a melhor e a mais solene cerimónia que os homens acharam para consagrar todos os seus grandes actos, imprimir-lhe um carácter de união e de comunhão social. Outrora não havia fundação de cidade, tratado de paz, instalação de magistratura, que não fosse acompanhada e corroborada por um festim. (Onde é que eu já vi isto? He,he!) Ainda hoje (1893) se não cria um grémio ou um sindicato, sem que os sócios jantem, cimentando os estatutos com champanhe e túbaras. As próprias relações do homem com a divindade estabeleceram-se sempre através da comida. O sacrifício da rês, sobre a ara, era uma espécie de merenda espiritual, em que o Deus, atraído pelo cheiro da carne assada, descia e se tornava acessível ao crente, partilhando com ele as vitualhas santas. O cristianismo, neste ponto, concordou com o paganismo - e a missa, pela consagração do pão e do vinho, é um verdadeiro banquete celebrado entre a terra e o céu.
Ora porque a cozinha e a adega exercem uma tão larga e directa influência sobre o homem e as sociedades, é que eu estranhava há pouco, folheando Ateneu, que a erudição arqueológica não estudasse de um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos, para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral. Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és. O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu modo de assar a carne. Um lombo de vaca preparado em Portugal, em França ou Inglaterra faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos, do que o estudo das suas literaturas. O macarrão é por si só o mais instrutivo comentário da história das Duas Sicílias. E, sendo esta uma verdade admitida já desde Montesquieu, porque se tem descurado tão levianamente o estudo prático da culinária greco-latina?
Decerto, não são os documentos que faltam. A mesa e os seus prazeres foram um dos assuntos sobre os quais se exerceu, com mais afinco, o génio poético e mesmo filosófico dos Antigos. Horácio, filho dedicado do Epicuro, não cessou de cantar honestamente a garrafa e o prato. Todo um livro dos Epigramas de Marcial é consagrado a celebrar o que se come e o que se bebe. Com o mesmo cálamo que traçava a Eneida, Virgílio compôs um poema sobre os doces de sobremesa. O mais severo dos homens, Catão, dedica páginas graves à couve, às suas variedades, às suas virtudes, à sua acção nos costumes. De uma simples ceia, Petrónio tirou todo um livro. E a História do Mundo, do sábio Plínio, é quase uma história universal dos comestíveis."

Como vêem, Eça queria era as receitas antigas experimentadas e servidas ao jantar, para poder avaliar dos sabores daquilo a que chamou Cozinha Arqueológica. Para isso teria de ter nascido um século depois...
Só há poucos anos é que temos vindo a descobrir antigos produtos, antigos sabores e a reconstituir antigas receitas,  que com o tempo foram caindo em desuso e deixaram de ter memórias para nós.
Amanhã continuarei com este tema, para quem gostar e quiser passar por cá.
Obrigada a todas as amigas que deixaram os seus comentários. Se não fossem eles, talvez eu não voltasse ao assunto por pensar que não vos tinha agradado.
Tenham um bom fim-de-semana. (Detesto a sigla...faz-me lembrar outra coisa, he, he!)
Beijinhos da

Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima