COZINHA ARQUEOLÓGICA (3)

sábado, outubro 02, 2010

Ora vivam! Cá estou eu para vos mostrar mais um bocadinho (para não vos maçar muito, he,he!) da Cozinha Arqueológica de Eça de Queiroz.
Hoje, o tema que ele apresenta, tem a ver com a mesa e as mesas; com as regras de etiqueta que já naqueles primórdios era tão importante; e com alguns menus da época.

" Também, por isso, não há detalhe exterior que nós não conheçamos, desde que se trate de um jantar romano - sobretudo nas casas luxuosas. Logo as salas nos são familiares, com os seus soalhos de mosaico ou de madeiras preciosas incrustadas de pedras faiscantes, ou de mármore numídico que se juncava de violetas e rosas; com os seus tectos de cristal, ou feitos de lâminas, para que de entre elas pudessem chover sobre os convivas aromas ou flores...
Tudo isto é conhecido, assim como as mesas, que se mudavam a cada serviço, umas de cedro, outras de marfim, outras de limoeiro com relevos de ouro, sustentadas por pés de ónix. Uma dessas mesas magníficas custara a Cícero, simples advogado sem grande fortuna, perto de quarenta contos. Mas que é isso em comparação com os tapetes de Élio Vero, um elegante enfastiado e doente, que valiam cada um cento e vinte contos? Do esplendor das pratas e das baixelas, e dos seus preços esmagadores, contam superabundantemente os coscuvilheiros e anedóticos historiadores da História Augusta.
Sobre a etiqueta dos banquetes temos também uma ciência segura; porque ela era tão essencial, de uma tão séria influência na vida pública, que Paulo Emílio, o vencedor de Perseu, considerava igualmente necessário ao homem de Estado, ao verdadeiro Romano, o saber organizar uma batalha e dispor um festim. Por isso os tratados abundam, marcando rigorosamente as horas mais favoráveis para um jantar delicado, o número dos convivas (que nunca deve ser inferior ao das Graças, nem superior ao das Musas), as conversações mais conducentes a uma boa e ditosa digestão (evitando sempre tudo o que se refira a processos ou negócios), a duração dos serviços, a sequência dos vinhos, o momento dos coros e da música, a ordem das saúdes oficiais e íntimas, os lugares de honra (os lugares consulares) nos triclínios, o modo de usar as coroas de flores e a qualidade dos presentes que à sobremesa o anfitrião distribuía ao som das harpas.
E do jantar propriamente, possuímos centenas de menus. Começava-se sempre simbolicamente pelos ovos: ab ovo. E desde logo aqui aparece, a meu ver, a lamentável deficiência da nossa erudição. Nós desconhecemos como se cozinhavam os ovos - ou, pelo menos, ignoramos o gosto, o sabor especial desses ovos iniciais. E, de facto, ignoramos o paladar de todos os pratos da alta cozinha clássica.Neste nosso fecundo período de reconstituições históricas, ainda não apareceu um cozinheiro bastante douto, que acendesse os seus fornos e refizesse um jantar romano, segundo as receitas da Arte Culinária do grande Apício. Os arquitectos têm reconstruído, com um saber forte e sagaz, os templos, as casas de cidade e de campo, as ornamentações dos jardins, os próprios sistemas de esgotos. A pintura tem ressuscitado em telas tão minuciosas que cada pincelada resume um tratado, todos os aspectos do viver greco-latino: as ruas, os mercados, as lojas; uma primeira representação num teatro; a Via Ápia, à tarde, à hora do passeio; a leitura pública de um poeta no Foro; uma sesta luxuosa nas Termas... Armas, carruagens, trajes, mobílias, jóias, tudo está modelado com paciente perícia. Toda a civilização, material e sumptuária da Antiguidade, a podemos ver, palpar, usar. Só não tratámos ainda de conhecer o sabor dos petiscos que comeram Lúculo ou o vasto Vitélio.
Há aqui uma lacuna crassa. E tanto maior quanto o sabor de um pitéu nos dá uma ideia mais completa do povo que o prefere, do que a forma de uma lança ou de um jarro. O homem põe tanto do seu carácter e da sua individualidade nas invenções da cozinha, como nas da arte. O Parténon, a Vénus de Milo e as Anacreônticas dão menos ideia da doçura, da graça, da delicadeza, da ligeireza dos Atenienses, do que aquela sua sobremesa tão predilecta e que consistia em maçãs cozidas desfeitas em mel, depois cozinhadas em folhas de rosa. E não basta afirmar doutoralmente que o imperador Maximino preferia o pato, que Alexandre Severo só se alimentava de lebre, que Augusto era um amador constante de pescadinhas, que Albino comia quatrocentas ostras, que Adriano tinha por prato favorito a empada de pavão, que Tibério de deleitava no pepino, que na mesa de Górdio II havia todo o ano maravilhosos melões e que Tácito amava ainda mais a salada do que a verdade. O interessante seria conhecer o preparo e o sabor destes pratos diversos, e reconstituir, com todos os condimentos, as pescadinhas de Augusto e o pepino de Tibério.
Logo por esta paixão do pepino está Tibério explicado, se acreditarmos no ilustre Dífilo que, mais que nenhum antigo, possuiu a ciência dos legumes e que afiança que o pepino produz "bílis, sentimentos amargos e misantropia". Nesta apreciação do pepino está Tibério todo revelado. E o povo romano não se revela ele também, todo inteiro, naquele petisco chamado moretum, que era uma paixão nacional, e sobre o qual Virgílio, como poeta nacional, rimou um poema?
O moretum era um guisado, uma moxinifada genial, em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada! E tudo isto se fundia, se unificava, fazia um petisco imortal. Quem não vê aqui manifestar-se o próprio génio de Roma, cujo esforço foi sempre criar a unidade na universalidade? O moretum é o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do Império."

Amanhã terminarei a partilha convosco,  deste livrinho que tanto me deliciou.
Depois o Meu Estaminé fechará por uns tempos. Está na altura de ir colher as uvas, os fígos , os marmelos e fazer as compotas do costume! Apanhar o louro para secar, o alecrim e a alfazema.
De tudo isso vos darei conta quando regressar. E prometo que vos darei umas receitas de Eça de Queiroz de que gostarão, certamente! Será assim como que um prémio para a paciência que tiveram com estes artigos tão extensos!

Beijinhos da

Bombom = Tia Fátima = Avó Fátima

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1 comentários

  1. Hummmm, sobremesa ao som das harpas, o que sera' melhor?
    Sou muito indecisa, com centenas de menus, acabaria por não comer nada - hehehe!
    Imagino o sabor e o perfume das maçãs cozidas desfeitas em mel, depois cozinhadas em folhas de rosa. Mas o pepino eu não gosto muito.
    Bombom, esse livrinho é realmente maravilhoso.
    Bjim
    Léia

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